“Vinho de São Jorge dos Casteletes”
Ao falar da ilha de São Jorge, e mais concretamente do ponto de vista económico, o primeiro pensamento que nos vem à mente é de que esta é a ‘Ilha do Queijo’, uma Ilha farta de pastagens, com uma produção leiteira significativa e onde se fabrica o mais que reconhecido Queijo São Jorge DOP.
Verdade seja dita, a ligação do Jorgense à terra vem desde a colonização da Ilha, onde se destacam os lacticínios, embora nem sempre assim tenha sido.
A Ilha de São Jorge foi conhecida, durante mais de três séculos, por ser onde se produzia bom vinho e onde a vitivinicultura desempenhou um papel de grande relevo em termos económicos, tendo sido mesmo a mais importante exportação, até ao séc. XIX, altura em que a sua produção foi drasticamente prejudicada, devido a dois fatídicos fatores que falaremos mais à frente.
Este é um facto que talvez seja desconhecido de muitos nos dias de hoje, mas que não passou despercebido a alguns historiadores e por aqueles que por estes mares passavam, como foi o caso de André Brue, Governador e Diretor Geral do Senegal (1) que, por volta de 1703, referia-se à ilha de São Jorge como uma ilha onde se produzia muito vinho.
Dizia João Soares de Albergaria de Sousa (2) que em São Jorge está o “clima mais delicioso dos Açores”, sendo o seu solo “o mais fértil sobre as costas”.
Segundo o autor, nascido a 16 da Janeiro de 1776, nas Velas, “as produções desta Ilha são da melhor qualidade, onde o vinho é reputado como o melhor dos Açores, superior ao de S. Miguel e Terceira, com uma exportação de duas mil pipas de vinho”.
Para este ilustre historiador Velense, “a Urzelina é uma aldeia célebre e famosa pelos seus generosos vinhos brancos do lugar dos Casteletes. Seus habitantes cultivam as melhores vinhas dos Açores”.
Ora, é exatamente das vinhas deste lugar dos Casteletes, que saía da Ilha o melhor vinho do Arquipélago, e a sua importância era tanta que uma provisão de El´Rei D. João V de 30 de Julho de 1716, ordena a cobrança de um imposto de um real em cada canada de vinho e aguardente produzido na ilha, para a construção da Câmara de Velas (3).
Sobre a sua exportação, Silveira Moniz (4), adianta que o movimento comercial dos Açores se faz com transações com Continente do Reino, América do Norte, Inglaterra e Alemanha, onde se exportam alguns produtos e recebem em troca outros.
Já José Cândido da Silveira Avelar (5) dizia que a vinha nesta ilha não esqueceu aos primeiros colonos, procurando para sua plantação os terrenos mais apropriados, ingratos à cultura de cereais, sendo por isso que a região vinhateira se estende ao sul da ilha, desde o lugar da Ribeira do Almeida até á Fajã das Almas.
Segundo este, o sítio dos Casteletes, na Freguesia da Urzelina, em que apenas se compreende um trato de terreno de alguns hectares, era o que produzia o melhor vinho dos Açores, como classificavam os antigos apreciadores. Das diferentes castas d’uvas as de melhor qualidade em vinho e produção eram o verdelho e o terrantez.
Refere o antigo Escrivão da Administração do Concelho de Velas, na altura a colheita de vinho, em anos regulares atingia as 10 mil pipas, chegando a exportação a fazer-se em grande escala para as demais ilhas do Arquipélago, Portugal e estrangeiro, sendo que, a sua apreciável qualidade tornou este género o mais importante ramo de comércio da ilha.
As excelências dos vinhos adquiriam tal fama que por volta de 1571 a exportação se fazia já em avultado número de pipas. Em 1612, a exportação também se pretendia fazer para o Brasil, Angola e países do Norte.
O vinho produzido em São Jorge era tão acreditado que diferentes praças de guerra se forneciam deste. Em 1690, por ordem do provedor de fazenda, foram 25 pipas de vinho. A Corveta inglesa Lucia, o capitão João Lya, em 24 de julho de 1752, recebeu nas Velas 109 pipas.
Em Maio de 1723, compareceu na Câmara de Velas, o irlandês Theobaldo Marghee, capitão do navio Santa Brizida, afim de carregar vinhos a negócio para o reino de Inglaterra, prometendo voltar em Outubro do mesmo ano, com algumas fazendas e um ou dois filhos seus para venderem e estabelecerem negócio nas Velas.
A fama do vinho da Ilha de São Jorge era tanta que este foi o único vinho dos Açores que marcou presença na grande ceia da Inauguração da Estátua Equestre de D. José I, em Lisboa (14), entre uma lista de 22 vinhos estrangeiros (franceses, espanhóis e italianos), sete Madeiras e alguns nacionais.
Aliás, o evento deu origem a grandes festividades, das maiores entre todas que o País tem assistido (15).
O bom vinho foi ganhando crédito até que, o Capitão General dos Açores, Conde D’Almada, por provisão de 9 de Março de 1801, para evitar especulações, ordenou que as pipas em que se recolhesse vinho para embarcar tivessem a marca S. Jorge.
Também Gaspar Frutuoso (7) referia que “em toda a ilha há trigo e vinhos em abastança pera a terra, e alguns se carregam pera as outras ilhas, principalmente Faial e Graciosa. Em bom ano se recolherão perto de três mil pipas de vinho, que se bebe na terra e carrega pera fora e bebem forasteiros, que vêm ali muitos por causa do bom porto que tem na vila das Velas, onde se acolhem navios com temporais, e nas Velas vão anaimar as suas e surgir seguros”.
A comprovar que havia anos em que a produção de vinho na Ilha de São Jorge atingia uns bons litros, está entre a correspondência do Capitão General dos Açores, Henrique da Fonseca da Sousa Prego, um ofício de 28 de Junho de 1830 (8), a solicitar ao Reino vasilhame para o dizimo do vinho da Ilha de S. Jorge.
Infelizmente o vinho de S. Jorge, com a sua reputação, foi vendido como se noutra ilha fosse produzido, como reporta o oficial da marinha Sueca Jean Gustave Hebbe (9) que, em “Descripção das Ilhas dos Açores”, com informações obtidas no fim de 1800 e inícios de 1801, referia que “São Jorge exporta annualmente 1.000 pipas de vinho, que pela maior parte vae para o Fayal”.
“Os vinhos e aguardente exportados como sendo do Fayal, vem geralmente do Pico e de S. Jorge (…) Do Fayal também sahem alguns carregamentos de vinho para a Terceira e S. Miguel. Esta também recebe do Pico e de S. Jorge”.
Em 1702, a Estatística de Produção Agrícola (10), conta que em São Jorge se produzia 10 mil pipas de vinho, apenas atrás da produção do Pico que chegava às 20 mil pipas. O Faial na altura não tinha registo de produção de vinho.
Por volta de 1800, a busca pelo vinho de São Jorge era muita, principalmente da Ilha do Faial, para depois o exportar. Marcelino Lima (11), recorda que o negócio dos vinhos era o que mais preocupava as entidades da Horta, onde a ânsia do lucro arrastava o comerciante à ilegalidade. Há registo duma empresa que solicitou ao Governo Interino dos Açores permissão para importar de S. Jorge 200 pipas de vinho, sob pretexto de que, sendo o vinho destinado ao Reino, não o podia beneficiar naquela ilha, nem os navios o podiam lá carregar. Revela Lima que “sabia-se que o pedido era sofisma, os vinhos entravam, mas para lutar com os do Pico. Em virtude do seu baixo preço davam margem a maiores lucros”.
Foram vários os historiadores que corroboraram de que em São Jorge e no sítio dos Casteletes, se fazia do melhor vinho dos Açores.
Segundo J. Duarte de Sousa (6), “já no princípio do séc. XVII a produção vinícola regulava de 7 a 8 mil pipas e quando já não avultava a colheita das vinhas da Queimada, as melhores da ilha, que haviam sido destruídas pelo famoso vulcão de 1580 e as quais produziam cerca de 1.500 pipas”.
Em 1897 escrevia o autor que “grande parte da região coberta de arvoredo, tinha algumas nesgas de terreno arável, fraquíssimos pedaços de vinha nos sítios mais apropriados à sua cultura e ainda grandes tratos de lava, que não verdeja planta alguma”.
Toda esta extensão de solo ubérrimo, transformado em charnecas e pedreiras pelos famosos vulcões de 1580 e 1808, e foi assim mesmo até ao ano de 1854, o melhor pedaço de te toda a ilha, o mais estimado e lucrativo. Foi a região de vinhas, que produziam assombrosamente, sem maior dispêndio nem desvelados cuidados, quando as videiras carregavam imensamente, lançadas sobre as faias mais velhas e gigantescas.
As vinha da Queimada, aniquiladas pelo vulcão de 1580, produziam já na época 1.500 pipas, e de toda a ilha, dera no ano de 1582 cerca de 10.000 pipas, segunda cálculos muito regulares.
Ora, exatamente o Vulcão da Urzelina em 1808 (16) foi o princípio do fim da vinha dos Casteletes. “No dia 1 de Maio de 1808, tremeu a terra tão frequentemente que se contavam oito tremores por hora…Das 11 para as 12 do mesmo dia, outro tremor, e juntamente num estrondo tão grande que a todos atemorizou, e de repente se viu levantar uma nuvem de fumo sobre o mais alto monte da Freguesia, … e em breve tempo engrossou e subindo ao mais alto céu fez arco sobre parte da Freguesia das Manadas e Urzelina, indicando um terrível castigo já mostrando nas redobradas e negras nuvens.
…Logo no mesmo dia choveu tanta areia de tarde que ficaram as casas cobertas de areia e os campos dali para cima em partes ficaram com altura de 7 palmos, e as vinhas dos casteletes até à Ermida de Stª Rita da Freguesia das Manadas, ficaram cravadas e as casas quase abatidas com o peso, saindo línguas de fogo do centro que chegavam ao céu”.
“As vinhas dos Casteletes ficaram enterradas até ao lugar de Santa Rita, nas Manadas, e muitas casas estiveram em perigo de se abaterem com o peso da areia que sobre elas caiu!”
Mas como um mal nunca vem só, no ano de 1854 as vinhas foram atacadas pelo oidium tukeri, e desde então esse próspero comércio de vinho d’outr’ora ficou completamente aniquilado. Lavradores remediados em relação a este género, ficaram pobres. Os campos de vinhas bem depressa se encheram de Silvados, por não serem suscetíveis d’outra cultura (5).
Mais tarde depois de 1874, o Barão do Ribeiro, Francisco José de Bettencourt e Avila, desenvolveu novos trabalhos nas vinhas da sua propriedade do Ribeiro, freguesia da Urzelina, obtendo recompensador resultado. Seguiram-lhe o exemplo o dr. Miguel Teixeira Soares, D. Martha Joaquina Pereira da Silveira e o sr. Amaro Soares d’Albergaria, os quais nos últimos anos eram, por assim dizer, os lavradores de vinho branco na ilha.
Segundo Avelar “os ricos proprietários dr. Miguel Teixeira Soares e sr. dr. José Pereira da Cunha da Silveira, até há poucos anos conservavam engarrafados vinhos do sítio dos Casteletes, do primeiro quartel do seculo, que rivalizavam com Os do Porto. Aquele cavalheiro ofereceu algumas garrafas que enviou à exposição de Paris, em 1867, sendo muito apreciada a excelência da sua qualidade”.
O terreno da Freguesia da Urzelina, na maior parte de origem vulcânica, presta cultura da vinha, que desde os primeiros tempos até 1854 foi a sua principal riqueza, por ser a parte da ilha que mais produzia vinho.
Nesse ano em que o oidium tukeri destrui as vinhas encheram-se os terrenos de mato. A Freguesia da Urzelina foi a mais que sofreu na ilha com a moléstia da vinha, dando lugar à emigração e escasseou o trabalho do povo.
Facto que foi relatado também em 1906 por Silveira Moniz (4), “há 100 anos a ilha de S. Jorge era tida como boa região vinícola. O odium, porém, devastou-lhe todos os vinhedos, a ponto actual produção ser insignificante, não chegando mesmo para seu próprio consumo. Ainda assim o pouco vinho que produz é de superior qualidade, sendo muito apreciado o dos Casteletes e Urselina”.
Em 1886 viu-se a chegada de mais uma doença da vinha: a antracnose. Nesse ano o agrónomo distrital de Angra adiantava que nas três ilhas, Terceira, Graciosa e São Jorge, tinha aparecido uma moléstia na vinha semelhante ao oídio. O Verdelho, a antiga casta dominante, permanecia a mais atacada (12).
No caso de São Jorge, onde o oídio continuava a fazer grandes destruições, a filoxera só chegaria anos mais tarde. Seria em 1897, numa visita à ilha realizada pelo agrónomo distrital Duarte Patten de Sá Viana, que se encontrariam fortes marcas do parasita.
No Concelho de Velas encontrou-se a mesma invasão nas vinhas de Amaro Soares de Albergaria, nos Casteletes, e da viscondessa de São Mateus, nos Terreiros. Esta pequena Ilha seria de todos os antigos e principais territórios produtores dos Açores aquele onde as destruições provocadas pelos agentes fitopatológicos foram mais importantes e definitivas. Apesar das várias tentativas, realizadas durante a segunda metade do século XIX, a exportação de vinho perdeu, em São Jorge, a enorme centralidade que havia tido até à primeira metade deste século.
Duarte de Sousa (6) deu igualmente conta deste fatídico acontecimento. Em 1854 o oidium invadiu os vinhedos e destrui-os por completo, aniquilando a riqueza principal da ilha. As vinhas estavam mesmo velhas e exaustas e não resistiram ao terrível parasita. Caíram no primeiro ataque.
Ricos proprietários de vinhas ficaram nesse ano pobres, e a ruína concorreu para o engrandecimento daqueles que só possuíam terrenos de natureza diferente e que subiram logo de valor. Começou-se então a dispensar mais atenção à indústria dos lacticínios e ainda à cultura da laranjeira, que afinal pouco resultado deu.
Alguns proprietários na época quiseram restaurar a vinha, como meio de aproveitamento desse campo desprezado e que no tempo dos vinhos tão precioso e rico era.
O Barão do Ribeiro foi o que mais trabalhou nesse empenho, e conseguiu que as suas vinhas produzissem regularmente mais de vinte pipas por ano, as quais foram vendidas a preço de 60$00.
Conta Duarte de Sousa que também o Sr. Amaro Soares de Albergaria, que possui prédios no coração da melhor região vinícola, tem sido incansável, de uma persistência austera. Tem querido, porém, aproveitar a vinha de verdelho pelo excelente vinho que produz e por isso também as colheitas não têm correspondido aos seus esforços, senão apenas em qualidade, pois o seu vinho branco Casteletes é precioso.
Relata ainda que muitos outros proprietários de vinhas de menor escala trataram nos últimos anos de as restabelecer, porém de uma maneira incompleta, pelo que a pujança das vinhas é efémera.
As vindimas de 1896 foram abundantíssimas, superiores às necessidades do próprio consumo da ilha, o que representou não pequeno auxílio para a economia, porque a importação desse género subia a uma dezena de contos.
De salientar ainda que ao longo da história vitivinícola, distinguiram-se alguns produtores como João Inácio de Bettencourt Noronha, que nas suas propriedades na ilha de São Jorge, onde se produzia os vinhos Verdelho e Terrantez (17).
Este vinho, era levado desembarcado na Baía de Villa Maria, na Ilha Terceira, onde depois era engarrafado no solar Villa Maria. Era depois exportado para Inglaterra e outros países. Os seus rótulos mais antigos datam de 1905 e 1910 e representam um dos mais antigos rótulos vinícolas dos Açores (18).
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(1) Descrição dos Açores por André Brue, in Archive dos Açores, Nº 61, Vol XI, 1890.
(2) Sousa, J.S.A. 1822, Corographia Açórica.
(3) Borba, A. 1996, in Revista Verdelho, n.º 1, ano I.
(4) Silveira Moniz, A.M. 1906, Terras Açoreanas – Notas Chorográphicas e Históricas, Ilustradas.
(5) Avellar, J.C.S. 1902, Ilha de S. Jorge – Apontamentos para a sua história.
(6) Duarte de Sousa, J. 2003, 2ª edição, Ilha de S. Jorge – Apontamentos Históricos e Descrição Tipográfica (1ª edição foi publicada em 1897.
(7) Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, 1963, livro 6, cap. 33º, Instituto Cultural Ponta Delgada.
(8) Archivo dos Açores, Vol XI, 1890.
(9) Descrição das ilhas dos Açores por Jean Gustave Hebbe, in Archivo dos Açores, Nº 60, Vol X, 1890.
(10) Archivo dos Açores, Nº 58, Vol X, 1889.
(11) Lima, Marcelino, 1943, Anais do Município da Horta (História da Ilha do Faial).
(12) Paulo Silveira e Sousa, 2004, Para uma história da vinha e do vinho nos Açores (175-1950).
(13) Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, 1963, livro 6, cap. 34º, Instituto Cultural Ponta Delgada.
(14) Revista Municipal Lisboa, Nº4, 2º trimestre de 1983, artigo de Fernando Castelo-Branco.
(15) Oliveira, Eduardo Freire, Elementos para a História do Município de Lisboa, 1ª parte, TOMO XVII, 1911.
(16) Archivo dos Açores, Vol V, 1883.
(17) Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/João_Inácio_de_Bettencourt_Noronha
(18) Bagos d’Uva (blogue): http://bagosdeuva.blogspot.com/2011/03/castellestes-um-vinho-de-s-jorge.html
(19) Bagos d’Uva (blogue): http://bagosdeuva.blogspot.com/2011/03/castellestes-um-vinho-de-s-jorge-2.html